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Questionamentos

Izabelly Lira

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Uma ligação da minha irmã de alma no meu celular, num dia de semana ocupado de 2017, me alertou que ela estava internada. Ela tinha tomado, em casa, alguns – muitos – comprimidos com o intuito de tirar a própria vida. E ela se arrependeu no ato. Ufa. Ligou para o 190, e foi parar no hospital. Fui ao encontro dela  assim que pude, com um travesseiro (objeto que ela tinha me pedido, pois a unidade de saúde onde estava não fornecia) e meu amor. E meus questionamentos internos. Como ela tinha chegado até ali?

 

A minha irmã de alma se chama Thainara Luiza de Miranda. Ela nasceu no dia 03 de fevereiro de 1999, em Curitiba. Eram ela e a mãe, só. A vida nos aproximou no início de 2006, na escola. Até ali, ela e a mãe dela já tinham mudado de casa uma vez. A mãe casou, e o padrasto a criou. Lembro dela me contando isso na escola, na época: “fui adotada pelo meu próprio pai”. Talvez meus questionamentos sobre minha amiga de cabelos loiros compridos, doces olhos verdes e jeito meigo e inocente tenham começado ali.

 

Em 2009 entramos na quinta série, e mudamos juntas da escola para um colégio. E ela e a mãe mudaram de casa novamente. A mãe tinha se separado do pai adotivo que era próprio. As duas ficaram um tempo na casa de uma amiga da mãe, e depois foram para um apartamento. Neste ano, também, nossa amizade se estreitou. No colégio novo, a Thai – este é o apelido pelo qual eu a chamo - era minha amiga e amiga de mais quem conseguisse ser. O jeito meigo não mudou. E a beleza dos cabelos longos e dos olhos impactantes não passava despercebida.

 

A Thainara, nesta época, se realizada no sonho de muitas meninas da nossa idade: ela era modelo mirim; vivia literalmente em um mundo cor de rosa (no quarto dela, no apartamento, tinha rosa até nos puxadores dos armários); ela cantava (e encantava) com uma voz de anjo em público sempre que podia; todos os meninos da escola babavam (literalmente) por ela. Era o que eu pensava, pelo menos. Mesmo assim, eu sabia que a Thai não vivia um mar de rosas completo. Ela não tinha as melhores das relações com a mãe dela. Ela cobrava notas boas, e a Thai tinha muita dificuldade em se concentrar nos estudos. Ela cobrava em todos os aspectos, e a Thai tinha dificuldade em atingir as expectativas da mãe.

 

O irmão da Thai, o Raphael, chegou em 2012. Nesta época, a Thai conheceu o pai biológico. A relação deles foi estreitada diante dos meus olhos.

 

Em 2013, elas mudaram de casa mais uma vez. Para mais longe. A mãe da Thai resolveu que queria ficar mais perto da família, então levou a Thai e o Rapha para Anhaí, no Paraná, onde nasceu. Antes da mudança, lembro da minha irmã de alma dizendo: “se nós realmente formos, eu vou virar emo”. Ela não queria a mudança. Não queria ir para uma cidade pequena ou deixar os amigos aqui. Ela foi. E ela não virou emo, mas as emoções até então adormecidas embaixo da meiguice e da fofura se revelaram a partir dali.

 

Nós mantínhamos o contato, mas acompanhei a vida dela lá pelas redes sociais. Rodeada de amigos, como sempre, vi através da tela do computador a Thai quietinha que eu conhecia se transformar numa menina festeira. Vi a Thai mostrar o talento musical dela no interior. Vi a Thai namorar pela primeira vez. E até aí, tudo bem. Até que os problemas emocionais e psicológicos começaram a aparecer. Ela foi diagnosticada com depressão e síndrome de borderline.

 

Ela veio pra Curitiba em junho de 2015 para passarmos alguns dias juntas. Em época de aula mesmo. Ela veio para a capital paranaense para tentar fugir do que estava sentindo no interior do Paraná. A tia, que proporcionou a viagem, conversou comigo depois que a Thai já voltado: “Iza, eu faria qualquer coisa pra ver a Thainara bem”, ela dizia no telefone.

 

Em 2016, morando em Cascavel, cidade próxima a Anhaí, com a mãe e o irmão, a Thai começou a cursar Jornalismo na faculdade. Aparentemente, ela estava melhorando. O sonho dela, porém, sempre foi cursar Medicina. E ser compreendida pela mãe, porque se assumiu lésbica. E voltar pra Curitiba.

 

Voltou. Em 2017, a Thai voltou para Curitiba para arrumar um emprego e estudar para prestar o vestibular para Medicina. Voltou a morar no apartamento do quarto com os puxadores cor de rosa. Mas ela já não era mais a mesma. Quando eu olhei para minha irmã de alma naquele ano, comparei-a com Thai de 2006. Tudo tinha mudado. A depressão mudou minha amiga. Ela foi diagnosticada com a doença no interior do Paraná, e nem a mudança pra capital fez ela melhorar. E foi então que ela chegou até lá. No hospital. Muitos comprimidos depois.

 

Foi naquela noite, naquela unidade de saúde, que a Thai me disse que sempre reprimiu os sentimentos dela. Que ela ainda estava descobrindo sua sexualidade. E que ela se sentia triste, mas que iria ficar tudo bem.

 

Depois daquela estadia no hospital, ela viajou com o pai, que é caminhoneiro, pelo Brasil. E voltou a morar com a mãe. Ela a acolheu de uma forma melhor. E mais uma vez, mantemos o contato, mas eu a via pelas redes sociais. Pela tela de um celular, eu a reconheci nas fotos triste. Desamparada.

 

Numa última mudança, ela retornou a Curitiba em junho de 2018. Sozinha. Desta vez, ela me disse que é pra sempre.

 

A Thai dos cabelos loiros e compridos passou a ser a Thai morena e de cabelo “joãozinho”. Os olhos verdes não são banhados em doçura. Minha irmã de alma mudou e ainda me enche de questionamentos internos. Mas, como ela mesmo me diz desde que nos conhecemos: “vai ficar tudo bem”. E vai. A depressão da Thai a mudou, mas não a matou. E não a matará. Ela tentou tirar sua própria vida quatro vezes, e hoje não toma mais remédio para os problemas emocionais. O maior questionamento interno que eu tenho sobre Thainara é: “de onde vem tanta força para continuar lutando?”. Talvez nem ela saiba a resposta. Talvez ela também se questione internamente sobre si. Questiona, porém vive. E sobrevive. “Minha vida está começando agora”, me disse, dia desses.

© 2018 - Do Porão à Luz

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