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Apenas UM Reflexo da Depressão

MC

No jornalismo, a expressão “gonzo” significa uma matéria de imersão. Para executar uma missão gonzo, o profissional precisa entrar de corpo e alma no universo ao qual queira descrever para que o texto seja o mais verdadeiro e real possível. Estou explicando isso, porque conviver com a depressão foi a tarefa imersiva que a vida se encarregou de me dar. Uma incumbência, admito, nada fácil, que me acompanha desde muito cedo.

Passei por algumas fases, e em cada uma delas, situações desencadearam estes sintomas dentro de mim. Na transição da infância para a adolescência, grandes perdas afetaram meu estado emocional. Com a morte do meu avô aos 9 anos, mudei de colégio e de bairro na cidade de São Paulo onde residia. Naquele ano, havia perdido a figura masculina em casa e não bastasse, fui parar em uma escola onde a perversidade infantil era aflorada, e meus dias se transformaram em um verdadeiro inferno.

A partir de então, recebi o título de “homem da casa”, meu pai, um inconsequente que acredita que ter filho é apenas colocar no mundo, foi embora quando eu tinha 10 meses, e essa responsabilidade com a morte do meu avô foi debruçada em mim. Era algo que me incomodava, até porque eu tinha 9 anos, e mesmo que em tom de “brincadeira” entre a minha mãe e minha avó, não queria ser o homem da casa, queria apenas ter a proteção de uma criança comum.

Comecei a viver em uma dimensão paralela, onde o meu quarto era meu único refúgio em meio a um mundo de pessoas zombeteiras e cruéis. Pouco a pouco me fechava, cada dia mais.

“Gay, viadinho... ahh é um baitola”... Ah, como essas palavras me incomodavam, no fundo, além de todas as minhas carências familiares, eu ainda tinha mais esse “problema”, realmente sou homossexual.

Nasci e cresci em um lar tradicionalmente religioso, disciplinado e porque não dizer: intolerante. Influenciado por nada menos que minha própria história, minha primeira namorada oficial foi aos 12 anos, e daí até os 16, fiquei com várias meninas na tentativa de provar para mim e paro o mundo que eu era uma pessoa “normal”, um “homem”. Pura ignorância, e nesse abismo, que eu mesmo estava me jogando, só me feria cada vez mais e criava frustrações em mim.

Aos 17 anos, tive meu primeiro surto. Morava no bairro do Tatuapé, em São Paulo, e movido por um desespero sufocante, me arrisquei andando em uma das vias mais perigosas que corta a cidade e não possui via para pedestres. Andei por pouco mais de duas horas e meia, atravessando da zona leste até o bairro da Bela Vista, zona oeste. Cheguei desnorteado na casa de uma tia, que me levou na mesma hora ao Hospital das Clínicas e lá, dopado por Diazepam os médicos conseguiram aos poucos me acalmar e fazer com que eu recuperasse o juízo.

Estava começando um pesadelo, resultado de anos de abafamentos, máscaras, mentiras e traições. Cursava o terceiro ano do ensino médio, porém o restante do semestre fiquei afastado por ordem médica. Estudei as matérias em casa, e ia ao colégio apenas para fazer as provas. Comecei fazer terapias com a psicóloga Debora, uma criatura extraordinária, e em paralelo fazia acompanhamento com um psiquiatra.

Muitos foram os obstáculos no tratamento também. O profissional que afrontasse minha mãe, dizendo para ela verdades que ela não queria ouvir, era sinônimo de tratamento encerrado.  Aliás, diálogo é uma palavra que não usamos em casa. Os assuntos mais simples se tornavam alvo de grandes discussões, o que faz até hoje o tema homossexualidade ser tabu.

Meu diagnóstico constou depressão e uma possibilidade de desencadeamento de transtorno bipolar. As angústias romperam as barreiras do meu peito, e não tinha mais como manter a máscara de pessoa feliz sendo que por dentro só existiam sombras, medos e rupturas.

Até para quem convive com essa doença é inexplicável descrever com precisão o que é sentir esses sintomas. Em nenhum momento quero ser leviano em menosprezar outras doenças, mas assim como o câncer que destrói a saúde de uma pessoa, a depressão da mesma forma consome por dentro e, se não desenvolve outros problemas de saúde, por vezes leva o indivíduo a tirar a própria vida.

Eu mesmo, já cheguei nesse extremo por duas vezes. É o cume de todos os desesperos e angústias que se acumulam ao longo de muitos anos. A automutilação para mim no momento da crise funciona como uma tentativa de aliviar a dor interna, que é terrível. Pela primeira vez escrevo sobre isso, e é como se revivesse cada segundo. Aos 18 anos, em meio a uma crise desencadeada por problemas domésticos, cortei meu pulso com cacos de uma mesa de vidro, fui levado novamente ao hospital e por mais uma vez recomecei os tratamentos que havia interrompido.

Comecei e parei com tratamentos por várias vezes, como havia dito acima, nem em casa eu tive realmente apoio para que um tratamento fosse de fato duradouro e definitivo. A adaptação com as medicações é outra novela, os efeitos colaterais sempre foram agressivos comigo. Logo no começo, usava uma medicação que tirava totalmente o meu sono, cheguei passar quatro dias e noites acordado, e então precisei substituir. Outra causava enorme desconforto ao formigar minhas mãos durante o dia todo, e assim segui na tentativa de encontrar algo que me curasse.

Mudei de cidade, comecei uma nova vida em outro lugar, longe da minha casa e tudo parecia aos poucos se encaminhar para uma progressiva melhora, mesmo com algumas questões internas não resolvidas, mas seguia. Como qualquer outra pessoa, tinha dias melhores e piores, mas nada fugia da linha tênue do autocontrole. Mas com o passar dos anos e novas situações se aglomerando: faculdade, trabalho e principalmente problemas pessoais, as minhas fragilidades começaram novamente pulsar com muita força e o caminho para um novo período tempestivo se anunciava.

Há dois anos estou lutando novamente contra esse mar de inquietude que voltou, ainda mais agressivo, a fazer parte dos meus dias. Comecei novamente um tratamento, que foi interrompido por problemas financeiros e há dois meses, em mais um rompante acabei provocando um acidente de moto intencional em uma rua deserta da região metropolitana de Curitiba.

É uma doença como o HIV, controlável, onde passamos por momentos de plenitude, mas que está ali. Preso às nossas emoções, preso aos nossos sentimentos, preso às nossas inseguranças. Pode ficar adormecido, mas está ali. Carência, medo, insegurança, tristeza e dessabores do dia a dia, funcionam como brasa para essa chama que se mantem acesa e ardente dentro do peito.

      

Aos que acham besteira, frescura ou bobagem, alguma das palavras que já ouvi direcionadas à depressão, repensem: frescura, não mata, besteira não dói e bobagem é algo que não causa mal a ninguém. É importante exercitar a arte de se colocar no lugar do outro, talvez isso fosse o segredo para salvar muitas vidas.

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